ANÁLISE DA OBRA “A FARSA DE INÊS PEREIRA” DE GIL VICENTE
- HUMANISMO
É um termo relativo ao Renascimento, movimento surgido na Europa, mais precisamente na Itália, que colocava o homem como o centro de todas as coisas existentes no universo.
Nesse período, compreendido entre a transitoriedade da Baixa Idade Média e início da Moderna (séculos XIV a XVI), os avanços científicos começavam a tomar espaço no meio cultural.
A tecnologia começava a se aflorar nos campos da matemática, física, medicina. Nomes como Galileu, Paracelso, Gutenberg, dentre outros, começavam a se despontar, em razão das descobertas feitas por eles.
Galileu Galilei comprova a teoria heliocêntrica que dizia ser o Sol o centro do sistema planetário, defendida anteriormente por Nicolau Copérnico, além de ter construído um telescópio ainda melhor que os inventados anteriormente. Paracelso explora as drogas medicinais e seu uso, enquanto Gutenberg descobre um novo meio de reproduzir livros.
Além disso, a filosofia se desponta como uma atividade intelectual renovada no interesse pelos autores da Antiguidade clássica: Aristótoles, Virgílio, Cícero e Horácio. Por este resgate da Idade Média, este período também é chamado de Classicismo.
A burguesia e a nobreza, classes sociais que despontam no final da Idade Média, passam a dividir o poderio com a Igreja.
É neste contexto cultural que a visão antropocêntrica se instala e influencia todo campo cultural: literatura, música, escultura, artes plásticas.
Na Literatura, os autores italianos que maior influência exerceram foram: Dante Alighieri (Divina Comédia), Petrarca (Cancioneiro) e Bocaccio (Decameron). Os gêneros mais cultivados foram: o lírico, de temática amorosa ou bucólica, e o épico, seguindo os modelos consagrados por Homero (Ilíada e Odisséia) e Virgílio (Eneida).
Podemos denominar Humanismo como ideia surgida no Renascimento que coloca o homem como o centro de interesse e, portanto, em torno do qual tudo acontece.
- GIL VICENTE
Pode-se dizer que, em boa parte, o teatrólogo e ator português Gil Vicente é fruto de uma época. Criou o que se convencionou chamar de teatro vicentino, caracterizado pelo poder da sátira. Sua biografia repleta de incertezas se dá aproximadamente entre 1465 e 1536, no contexto do que se convencionou chamar de Humanismo português.
Escreveu autos, comédias e farsas, em castelhano e em português. São conhecidas 44 peças, 17 em português, 11 em castelhano e 16 bilíngues. Destacam-se dois gêneros:
a) os autos, com a finalidade de divertir, de moralizar ou de difundir a fé cristã; e
b) as farsas, peças cômicas de um só ato, com enredo curto e poucas personagens, extraídas do cotidiano.
Ambos são plenos de críticas à sociedade.
O ponto mais forte de Gil Vicente está na criação de tipos humanos como o velho apaixonado, a alcoviteira, a velha beata, o escudeiro fanfarrão, o médico incompetente, o judeu ganancioso, o fidalgo decadente, a mulher adúltera e o padre corrupto.
Escritas em versos, as peças estão repletas de trocadilhos e ditados populares. É importante ressaltar que a crítica do dramaturgo português é muito mais aos indivíduos corruptos do que à religião em si mesma, seus dogmas e hierarquias.
Nesse aspecto, Gil Vicente crê no teatro como uma forma de denunciar a degradação dos costumes, seja na Igreja, na família ou entre as classes profissionais como os médicos ou sapateiros. Acima de tudo, acredita no poder do riso como uma maneira de recolocar o homem no bom caminho, aquele que o afasta do vício em direção à virtude.
- CARACTERÍSTICAS
3.1. Fusionismo;
3.2. Personagens planas (alegóricas e tipificadas);
3.3. Crítica social democrática;
3.4. Finalidade didático-moralizante;
3.5. Medida velha;
3.6. Aspecto purgativo: riso/ sátira/ humor;
3.7. Busca a moralização social.
- A FARSA DE INÊS PEREIRA
4.1. Resumo
Uma jovem sonhadora, chamada Inês Pereira, procura, por meio do casamento com um homem que saiba tanger viola, fugir à rotina doméstica. Despreza a proposta de Pero Marques, filho de um camponês rico, homem tolo e ingênuo, e aceita se casar com Brás da Mata, escudeiro pelintra e pobretão. No entanto, os sonhos da heroína são logo desfeitos, porque o marido revela sua verdadeira personalidade, maltratando-a e explorando-a. Brás da Mata vai para a África e lá vem a falecer. Inês, ensinada pela dura experiência, toma consciência da realidade e aceita se casar com Pero Marques, seu primeiro pretendente. Depressa também a jovem aceita a corte de um falso ermitão. A farsa termina com o marido (cantado por ela como cuco, gamo e cervo, tradicionalmente concebidos como símbolos do homem traído) levando-a às costas (asno que me carregue) até a gruta em que vive o ermitão, para um encontro nada ingênuo.
4.2. Motivo da obra
Após cogitarem que suas obras não passavam de imitação, plágio, Gil tenta provar sua sagacidade por meio de um desafio que lhe fora lançado. Sorteado o tema (Mais quero um asno que me carregue do que um cavalo que me derrube), ele formula a mais complexa farsa de sua coletânea de produções teatrais.
4.3. Crítica
Vicente problematiza um comportamento de época que consistia no projeto do casamento por interesse. Inicialmente Inês agrega valores românticos e elevados, depositando na instituição do casamento uma fé injustificada que um bom homem seria suficiente para sua felicidade. Ao recriar seu comportamento infantil, Gil agride diretamente um dos pilares de sustentação da sociedade medieval que impunha o matrimônio como elemento fundamental.
Tem-se também, explicitamente exibido o preconceito que havia em relação aos judeus, colocados, nessa obra, como indivíduos que se valiam do mercado matrimonial católico para ganhar a vida. Latão e Vidal são caricaturizadas e minimizadas a meros personagens cômicos.
Outro apontamento perceptível é de que, apensar de ser uma farsa, Gil não perdoa o clero. Ao final da obra, Inês vai ao encontro amoroso com um “ermitão”, sujeito às repreensões cômicas do autor.
Após o casamento frustrado com Brás da Mata, Inês passa por um processo de amadurecimento e verifica que o mundo era feito de interesses, no qual não havia lugar para razões nobres que pudessem justificar a união. Diante disso, ela subverte o papel da donzela inocente e doce assumida em um primeiro momento e ascende como uma mulher manipuladora e interesseira. É necessário enfatizar que, apesar de materialista, ela se coloca num lugar à frente das mulheres de seu tempo, manipulando o homem, forma indireta pela qual o autor levanta uma severa crítica contra o comportamento masculino passivo.
4.4. Personagens
Inês Pereira: jovem esperta que se aborrece com o trabalho doméstico. Deseja ter liberdade e se divertir. Sonha casar-se com um marido que queira também aproveitar a vida. Principal personagem da peça. Moça bonita, solteira, pequena-burguesa. Seu cotidiano é enfadonho: passa os dias bordando, fiando, costurando. Sonha casar-se, vendo no casamento uma libertação dos trabalhos domésticos. Despreza o casamento com um homem simples, preferindo um marido de comportamento refinado. Idealiza-o como um fino cavalheiro que soubesse cantar e dançar. Contraria as recomendações maternas rejeitando Pero Marques e casando-se com Brás da Mata, frustra-se com a experiência e aprende que a vida pode ser boa ao lado de um humilde camponês. Inês deixa-se levar pelas aparências e ridiculariza Pero Marques despedindo-o de sua casa para receber Brás da Mata. Casa-se com ele, mas sua vida torna-se uma prisão, ela não pode sair e é constantemente vigiada por um moço. Inês sofre e chega a desejar a morte do marido. Ele morre covardemente na guerra e Inês casa-se com Pero Marques. Ele satisfaz todos os seus desejos e chega até a carregá-la nas costas para um encontro com um amante (sem saber, porém, que era para isso).
Mãe de Inês: mulher de boa condição econômica, que sonha casar Inês com um homem de posses. É a típica dona de casa pequeno-burguesa e provinciana. Preocupada com a educação e o futuro da filha em idade de casar. Dá conselhos prudentes, inspirada por uma sabedoria popular imemorial. Chega a ser comovente em sua singela ternura pela filha, a quem presenteia com uma casa por ocasião das núpcias.
Leonor Vaz: fofoqueira, encarregava-se normalmente em arranjar casamentos e encontros amorosos. É o esterótipo da comadre casamenteira que sabe seu ofício e dele se desincumbe com desenvoltura. Sabe valorizar seu produto com argumentos práticos de quem tem a experiência e o senso das coisas da vida.
Pero Marques: primeiro pretendente de Inês rejeitado por ser grosseiro e simplório, apesar da boa condição financeira. Foi seu segundo marido. Camponês simples, não conhece os costumes das pessoas da cidade. É uma personagem ambígua, ao mesmo tempo que é ridicularizado pela ingenuidade, é valorizado pela integridade de caráter. Fiel e dedicado, revela se um gentil e carinhoso marido. É tão simples que não sabe para que serve uma cadeira. É teimoso como um asno e diz que não se casará até que Inês o aceite um dia.
Latão e Vidal: judeus casamenteiros, assim como Leonor. Os judeus casamenteiros são muito parecidos, têm as mesmas características, na verdade são o mesmo repartido em dois. São a caricatura do judeu hábil no comércio. Faladores, insinuantes, humildes, serviçais e maliciosos, são o estereótipo de que a literatura às vezes se serviu, como, por exemplo, no caso desta peça de Gil Vicente.
Brás da Mata: escudeiro, índole má, primeiro marido de Inês. Interesseiro e dissimulado é a representação da esperteza das classes superiores. É um nobre empobrecido que não perde o orgulho e pretende aproveitar-se economicamente de Inês através do dote. Brás da Mata é um escudeiro, isto é, homem das armas que auxiliava os cavaleiros fidalgos. Na mudança do feudalismo para o capitalismo, a maioria permaneceu numa condição subalterna, procurando imitar a aristocracia.